quarta-feira, 25 de maio de 2011

Medicina Chinesa enquanto Arte (ou sobre A Divina Iluminação ou o Insight Profundo)




Uma tradução livre, baseada no livro de:
KAPTCHUK, Ted. The web that has no weaver: undestanding chinese medicine. Capítulo 9: Chinese medicine as an art: or on the Penetrating Divine Ilumination. Pp 283 a 294.

Em princípio aprendemos como pedaços e peças têm sido colocados juntos para formar uma imagem refinada de Yin Yang em uma pessoa. Mas este método de colocar as pedras, montanhas, névoa e seixos da vida humana numa paisagem clínica coerente é a maneira que as tradições usam para treinar os médicos novatos. Por trás deste método há um outro processo – uma oposição Yin a um método Yang. Este processo tem a ver com a dialética entre o Todo e as Partes, um outro nível de Yin e Yang. Este paralelo oculto é a verdadeira arte da medicina chinesa, em oposição a seu conhecimento formal, e manifesta-se em múltiplos e contínuos níveis. Cada nível da dialética entre o Todo e as Partes progressivamente revela camadas mais profundas de uma antiga arte cuja maestria é um dos principais objetivos de um médico dedicado.

O primeiro nível da dialética do Todo e das Partes indica que a Medicina Chinesa nunca consiste em uma soma - juntar as Partes (isto é, queixas, sinais e sintomas) para formar um Todo. As partes nunca formam um Todo. De fato, o Todo é que determina o significado dos componentes; é o contexto que governa. Na paisagem clínica, a realidade das coisas apenas existe – e portanto somente se manifesta – numa totalidade, através da força da tendência (a dinâmica Yin Yang inerente) que une seus vários elementos num todo. Nenhum componente de um padrão pode ser isolado; nenhuma peça tem um significado ontológico independentemente de todo ambiente em que está inserida. É a configuração que dá sentido ao fragmento, e algumas vezes inclusive aspectos de múltiplos padrões podem emergir. Por exemplo, de fato qualquer padrão ou combinação pode resultar numa queixa de “olhos secos”. O significado energético de “olhos secos” vai ser em última instância definido pela paisagem.

O segundo nível da dialética do Todo e das Partes adotada pelo Leste Asiático tem a ver com o fato de que não há separação definitiva entre o Todo e as Partes. O Todo está impresso em cada pequena unidade da paisagem clínica. Um médico verdadeiramente competente será capaz de diagnosticar a partir de qualquer pequena parte da configuração humana. Nas mais sutis sombras de uma particular atmosfera emocional, ou pela língua, ou pelo jeito de caminhar, ou através do pulso, o mestre pode discernir um padrão, porque o Todo deixa sua marca característica em cada Parte.
A particularidade do segundo nível (as partes refletem o todo) permite um refinamento adicional. O domínio do nível dois pode se tornar bastante sofisticado ao ponto de fornecer de fato o retrato de uma pessoa. Um bom médico pode, por exemplo, ler a fórmula de acupuntura ou a fórmula herbal de um paciente, que foi administrada por outro médico, e facilmente descrever o paciente com uma incrível quantidade de detalhes.

O terceiro nível da dialética do Todo e das Partes é o mais profundo; as palavras são com freqüência inadequadas para descrever este processo. Os clássicos de medicina afirmam que dominá-lo leva o tempo de uma vida. A questão aqui é totalidade e imediatismo. Com relação a este, o nível um (que diz respeito a como o todo define as partes e permite um diagnóstico) e o nível dois (que diz respeito a como o todo pode ser identificado nas partes permitindo uma combinação única de ervas e pontos de acupuntura) são na verdade preliminares. O nível três é o refinamento supremo da arte médica. Ele implica a possibilidade de intimamente e intuitivamente apreender a paisagem em sua completude.

O terceiro nível desta arte tem relação com um íntimo, intuitivo e imediato encontro humano. Na tradição médica este nível de maestria é denominado Tong Sheng Ming: Penetrar na Divina Iluminação, ou no Insight Profundo.
O Nei Jing sublinha que este método é superior (é o “Espírito” da medicina) se comparado com as formas mais primitivas e lineares de examinar o paciente.
Bian Que diz que esta arte, ao que parece, consiste em discernir o padrão instantaneamente; intuitivamente captar seu movimento geral. Assim o médico, como um pintor, precisa estar inspirado, precisa possuir uma consciência particularmente sensível, de forma que consiga unir-se em espírito com a paisagem, abrindo-se e comunicando-se com ela, apreendendo numa pincelada como toda a cena funciona.
Se o nível um é verdadeiro (é necessário apreender o todo para compreender as partes), e se o nível dois é verdadeiro (o todo impregna cada parte), então o nível três deve ser igualmente verdadeiro – o todo é sempre uma presença que é imediatamente palpável no encontro entre médico e paciente. De fato, o Todo é a única coisa que está fundamentalmente presente.

Penetrar no Insight Profundo é o método “secreto” escondido por trás dos Quatro Métodos de Diagnóstico e da Diferenciação de Síndromes que facilmente escapa ao médico novato; ele pode apenas ser dominado pelos veteranos mais maduros. O Insight Profundo não pode ser ensinado, ele desenvolve-se juntamente com o médico enquanto seu ofício vai sendo honradamente feito. Depois de uma vida de prática, usando os níveis mais simples de conhecimento e arte em Medicina Chinesa, ele automaticamente e autonomamente revela ter estado sempre presente. A poética totalidade é real; tudo o mais era apenas detalhe. E para o praticante calejado, tudo o mais é preliminar. Todo o conhecimento e arte leva até aqui.

Enquanto o encontro do nível um permite um diagnóstico e o nível dois permite uma acurada formulação de ervas e acupuntura, é o nível três que permite a misteriosa transmutação que acontece no coração do encontro curativo. Penetrar no Insight Profundo (mesmo enquanto ele ainda está escondido da consciência do médico novato) é a verdadeira base do sucesso de qualquer tratamento e engajamento clínico. Penetrar o Insight Profundo não é meramente um conhecimento intuitivo, é um “tratamento secreto”, o que Wu Kun (1551 – 1620 d.C.) denominou “a medicina sem forma”.
Penetrar no Insight Profundo é o coração da dialética da cura – o ponto onde a receptividade (Yin) automaticamente e instantaneamente torna-se transformação (Yang). Este momento de Insight Profundo implica a ressonância do Qi entre o paciente e o médico. Intimidade e profundo senso de cumplicidade tornam-se o elixir de uma ampla cura. Avaliação e tratamento, paciente e médico, Yin e Yang fundem-se. A cura manifesta-se.

Penetrar no Insight Profundo é a mágica de alma encontrando alma, espírito refletindo espírito. Este reconhecimento instantâneo necessariamente dá início a um profundo tratamento. As respostas imediatas do médico no encontro clínico, as palavras, postura, gestos, questões, atenção, intenção, autenticidade, empatia, compaixão, fé e visão – afetam profundamente e ressoam no Espírito do outro ser humano. Penetrar este Insight Profundo é a definitiva base da cura, é a mais alta forma do Yin e Yang da cura.

“Fazer o paciente sentir-se melhor antes mesmo de ter tomado o remédio
é o método mais direto.”
(Xu Shu-Wei; 1080 – 1154 d.C.)

“Os Chineses usavam um método de cura que iniciava-se antes mesmo
de o remédio ter encostado na boca.”
(Sun Zhun)